domingo, 12 de outubro de 2008

Um poeta chorando... diante do espelho da vida


Diante de mim eu vi um poeta chorando,
embalando um poema órfão
como quem borda a existência
com dedos humanos e lentos.
Sem conhecer que antes da intenção
fenece o gesto,
trazia no semblante o silêncio
que emoldura as desolações dos culpados
e o cheiro melancólico
de todos os outonos do mundo.
Na pele, a vestir suas carnes,
uma camisa negra e desbotada,
alegoria costumeira dos corpos miseráveis
e o medo transparente de que a noite
não seja mais que uma semente estéril
plantada no luto do céu.
Nos versos, chama de vela oscilando no escuro,
ninava um sentimento manso,
sem braços, sem sangue,
sem orgulho que lhe calasse o sentido.
Chorou até a última cogitação e,
sem saber se as sombras se deitam no chão
também para dormir,
enclausurou no peito a luz prateada
que nascera em seus olhos quando, um dia,
adivinhara o amor num poeta mudo.
Sim, eu o vi
Diante do espelho que refletia minha vida

"Deixei que a escuridão me tomasse o olhar. Esperei que a imagem no espelho recuperasse o tempo próprio dos gestos que eu simulava do outro lado do quarto (coisa mais estranha, um espelho assíncrono, pensei). Todavia, tinha sido engraçado, e até estimulante, verificar como os meus gestos eram lentos (e eu queria que fossem rápidos), tornados ainda mais lentos pelo desfasamento entre o momento em que eram executados e o posterior momento em que, tal como num filme, os via naquele espelho pousado na parede, do outro lado do quarto.

A dada altura, não sei muito bem quando, os meus gestos tornaram-se, de fato, concomitantes (aquém e além do espelho), aprisionados em reflexões fugazes e animadas pelo meu movimento contínuo. Foi nessa altura que peguei no revólver e despachei o assunto. Dei um tiro no meu próprio reflexo, no sítio onde era suposto estar o coração (a sua imagem refletida, pensei mal, a imagem refletida de um pulôver azul sob o qual deveria estar: pele, costelas, músculos, pulmões e, talvez, um coração, pensei melhor). Os vidros estilhaçados (que agora repousam no cesto do lixo da cozinha) são a prova de uma tentativa de assassinato (e não de suicídio). Tentativa, digo bem: ainda aqui estou, vivo e castigado O espelho era novo, vou ter que pagá-lo com a meu próximo salário”

Hoje quando olhei para o espelho não me vi lá...

o meu reflexo desapareceu, e eu juntamente com ele.

Indiferente não o procurei...


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